Das Peixeiras Ambulantes: Memória, História e Desaparecimento.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Ao longo do século XIX e bem dentro do século XX, as ruas empedradas de cidades atlânticas como o Porto e Lisboa eram quotidianamente percorridas por figuras de carácter singular: as peixeiras ambulantes, mulheres de extraordinária têmpera, herdeiras de uma tradição multissecular que fazia do corpo e da voz instrumentos de sustento familiar e de perpetuação cultural.

Trajavam, quase invariavelmente, saias grossas de burel ou lã, por vezes remendadas de gerações, blusas modestas de chita ou estamenha, aventais de riscado para acautelar as vestes do contacto com o peixe, lenços atados sob o queixo ou cruzados à cabeça, sobre rodilhas de pano que amparavam o peso da canastra. Esta, por sua vez, era feita de verga ou madeira, forrada a folha de zinco, onde transportavam o peixe acabado de sair da lota, ainda escorrendo água salgada, cheirando ao largo.
Varina ou Peixeira
Partiam muitas vezes das zonas ribeirinhas – a Afurada, em Vila Nova de Gaia, as margens de Matosinhos ou a Ribeira do Porto; em Lisboa, das Docas, de Alcântara ou de Cacilhas –, ainda de madrugada, para garantir aos fregueses o peixe do dia. A sua presença era anunciada pelos pregões, verdadeiras cantigas de cadência muito própria, cujas palavras se perdiam, mas cujo timbre rasgava a neblina matinal e fazia eco nos becos, calçadas e escadarias.

Estas mulheres, quase sempre vindas de famílias pobres de tradição piscatória, assumiam no seio familiar o duplo papel de provedoras e guardiãs de usos e costumes. Eram, na sua rudeza, eloquentes vendedoras, capazes de argumentar com mestria, de medir e pesar de memória, de fiar peixe a crédito a quem sabiam de confiança. No Porto, circulavam sobretudo entre a Ribeira, Miragaia, Sé e até Cedofeita; em Lisboa, palmilhavam Alfama, Mouraria, Madragoa e Bairro Alto, levando o peixe aos lares da burguesia e do povo.

A sua figura tornou-se imagem icónica do viver urbano de antanho, mas também testemunho da precariedade: suportavam ao ombro ou à cabeça pesos consideráveis, expostas ao frio e à chuva, percorrendo léguas a pé, por vezes descalças, mantendo viva uma economia quase invisível, mas vital.
O declínio destas aguerridas vendedoras principiou na segunda metade do século XX, quando os hábitos de consumo se transformaram: o peixe passou a encontrar-se em mercados municipais cobertos, depois em supermercados; a refrigeração garantiu a conservação por mais tempo; o automóvel e as cadeias logísticas afastaram a necessidade da venda ambulante. A tudo isto somou-se a crescente fiscalização sanitária e a urbanização intensa, que foram empurrando estas figuras para a periferia e, por fim, para a memória colectiva.

Desapareceu, assim, não apenas um modo de vida, mas todo um quadro humano que era, ao mesmo tempo, economia, tradição oral, força de trabalho e presença quotidiana. Ficaram as fotografias antigas, os registos etnográficos e a nostalgia de um tempo em que o pregão ecoava pelas ruas estreitas, lembrando ao citadino que o mar estava sempre próximo – e que era na voz da peixeira que se fazia sentir, rude e terna, a voz de um povo que, vivendo entre as vagas e o granito, soube levar o sustento até ao coração da cidade.

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